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Cazuza, Renato Russo e Freddie Mercury são personagens de um cenário passado em que abordar o tema sexualidade em todas as suas esferas era de uma dificuldade – e polêmica – indelével. A contemporaneidade descortinou no século XX e, marcada pelo advento do viés tecnológico e remodelação das relações interpessoais, fez com que hoje as informações e o debate sobre sexo e infecções sexualmente transmissíveis (IST) circulassem a todo vapor na imensidão das mídias sociais, desmascarando – em partes – o pavor e preconceito enraizado na sociedade. Abriram-se alas para o avanço da medicina em diversos âmbitos, inclusive na consolidação de diversas medidas preventivas e anticoncepcionais. Isso não significa, entretanto, que nossa sociedade esteja aproveitando essa informação para processos educacionais responsáveis, contínuos e efetivos. Dados exprimem que a preocupação com a prevenção de infecções sexualmente transmissíveis é deixada em segundo plano pelos jovens brasileiros. A recente dilatação nos índices de doenças infectocontagiosas é de se chamar a atenção. Só de HIV, houve um aumento muito significativo entre os mais jovens. Dados do Ministério da Saúde apontam que, na faixa etária dos 20 aos 24 anos, o número de infectados subiu de 16,2 casos por 100 mil habitantes, em 2005, para 33,1 casos em 2015. O chocante é que, mesmo representando o método mais seguro de prevenção e inclusive o mais barato, a camisinha e sua utilização em relações sexuais vem sendo cada vez mais abandonada em território nacional, o que é preocupante. Uma pesquisa realizada pela empresa Gentis Panel revelou que 52% dos brasileiros nunca ou raramente usam preservativos, 10% utilizam às vezes e só 37% se protegem sempre ou frequentemente. O estudo também mostrou que a maior parte da população já esteve exposta ao HIV. A Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, por sua vez, acusa que as ocorrências de sífilis por transmissão sexual cresceram 603% em seis anos. São infecções que não saíram de moda e tabus que permaneceram no túnel do tempo. Gabriel Estrela é um personagem de hoje que convive e vive muito bem com o diagnóstico soropositivo todos os dias. Mas nem sempre foi assim.
Gabriel Estrela: um lado da moeda
O brasiliense de 26 anos recebeu a notícia de que era soropositivo aos 18, seu início de vida adulta e, de repente, viu seus planos e expectativas sobre a maioridade acompanhados do diagnóstico. O choque, na época, despertou o desejo de transformar radicalmente alguns aspectos da sua vida. “Eu decidi dar um passo para trás e repensar um pouco o que seria dessas minhas expectativas e planos dentro dessa nova realidade”, conta. Naquele momento, Gabriel trancou a faculdade de comunicação, foi cursar biomedicina e estudar teatro. Sua inquietude queria compensar de alguma forma o peso do diagnóstico na sua vida, mas pouco a pouco tudo encontrou o seu devido lugar. “Hoje eu percebo que era tudo estigma e medo da minha cabeça. Eu não precisava ter mudado nada naquele momento. Não por isso”. Gabriel Estrela diz ter tido muita sorte em seu processo de superação, já que sua família se fez muito presente por e para ele, assumindo a responsabilidade de todos os cuidados médicos e transparecendo segurança naquele momento tão difícil. “Isso fez com que eu ganhasse muito tempo para processar e um espaço muito seguro para amadurecer tudo isso em mim”, conta. A necessidade de dialogar sobre o assunto fez com que, pouco a pouco, o cenário mudasse. O que antes era gatilho de frustração, hoje é trabalho. Atualmente, Gabriel compartilha sua história com o mundo por meio de seu projeto Boa Sorte, que atua nas diferentes mídias sociais para quebrar preconceitos, desmitificar, informar e transformar a sociedade em um lugar melhor para quem vive com o HIV. Sua iniciativa serve de inspiração para milhares de pessoas que também receberam o diagnóstico e querem, de alguma forma, conviver bem com isso. “Faz parte da minha vivência, caracteriza quem eu sou. Escolhi transformar isso no foco da minha vida. Me sinto feliz e completo ajudando as pessoas”, afirma. “Às vezes, cansa estar sempre falando sobre isso, claro, como todo trabalho e características nossas cansam. Mas sei que sou privilegiado de disparar esse diálogo e alcançar todo esse espaço da maneira que alcanço e sou muito grato por tudo”. O projeto cresceu, ganhou forma e hoje conta com cerca de 25 mil inscritos no Youtube e mais de 16 mil curtidas no Facebook.
O HIV ainda é uma palavra que espanta, causa alvoroço e esse pavor só pode ser revertido à base de muita informação. Gabriel afirma que o conhecimento por si só não se faz suficiente. “A chave está na acessibilidade a essa informação. Não adianta só distribuir arquivos científicos para as pessoas. Não é todo mundo que tem a facilidade de ler um papel com palavras difíceis e é capaz de entender todas as entrelinhas”. O youtuber também comenta sobre a falta de preocupação dos jovens quanto ao uso da camisinha e diz que esse hábito é consequência de como a sociedade afasta o diálogo ao impor juízos de valor e maniqueísmos morais sobre sexualidade. “Existe sim uma preocupação em mandar os jovens usarem camisinha, mas esse conselho é atrelado à ideia de assustar, de vigiar o sexo alheio e de impor verdades sobre o que seria o jeito ‘certo’ e ‘errado’ de se relacionar”, afirma. “O que as pessoas não entendem é que existem diversas formas de amar além do clássico ‘papai e mamãe’ e todas são experiências válidas, carentes de respeito e amparo. Somos ainda uma sociedade muito conservadora quando o assunto é sexo e saúde”. Ele ainda reitera que essa abordagem heteronormativa provoca uma vulnerabilidade nos mais jovens. “Quando eu converso com essas pessoas, me deparo com indivíduos extremamente interessados e dispostos a aprender. Talvez o problema esteja em nós que não estamos sabendo como chegar até eles de maneira leve, despertando o interesse na conversa e abrindo portas para que eles sejam escutados”.
Para Gabriel Estrela, o terrorismo atrelado às infecções sexualmente transmissíveis propaga a ideia de que falar disso necessariamente seja algo “pesado”. Germina-se a ideia de que essas são as consequências se “der tudo errado”, “você se arriscar” ou “cruzar com a pessoa errada”. “Mas nada disso! Falar de IST é falar de carinho, cuidado, oportunidade e saúde”, finaliza.
O outro lado da moeda
“Foi a pior notícia da minha vida”. Assim Lucas – nome fictício que usaremos ao entrevistado que prefere não ser identificado – definiu em poucas palavras o momento de seu diagnóstico soropositivo. O advogado recebeu a notícia aos 26 anos por meio de um exame de rotina. “Eu estava namorando na época e ingenuamente confiava no meu parceiro. Ele propôs que não usássemos mais camisinha em nossas relações sexuais e eu aceitei”, conta. Meses depois, veio a notícia. “Naquele momento, perdi o chão”. Atualmente, aos 34 anos, o jovem lembra e lamenta o ocorrido. “Por algum motivo minha primeira reação foi a de que minha vida tinha acabado”, relembra. Os três primeiros meses pós diagnóstico foram de puro luto, um momento totalmente introspectivo em que Lucas optou por se afundar em livros, informações e conhecimento sobre o assunto que jamais imaginaria fazer presente em sua vida: “Procurei um bom infectologista, comprei livros e conversei com especialistas sobre o tema”.
Para o advogado, o preconceito permanece o grande vilão dessa história. A década de 80, marcada pela explosão do rock nacional, é também lembrada como a era da AIDS. Era normal que parentes, amigos e ídolos se despedissem um a um, já que ser diagnosticado com o vírus – até então pouco conhecido – era, na época, praticamente uma sentença de morte. Mesmo vinte anos depois, os moralistas de plantão prevalecem com seus julgamentos precipitados. “Boa parte da população mundial atrela o diagnóstico do HIV a pessoas de vida promíscua, regada a drogas e muito álcool”, afirma. “Isso é puro preconceito. Basta uma única relação sexual sem proteção ou um pequeno descuido em uma rápida transfusão de sangue qualquer para que ocorra a infecção”. Lucas frisa que o preconceito permanece vivo por ainda associarem o vírus a imagem de Cazuza agonizando em praça pública. “Confesso que continuo tendo muita dificuldade em lidar com o tema. Faço terapia e luto diariamente comigo mesmo para aprender a conviver com isso da melhor forma”, conta.
O paulista diz que, ainda hoje, ser soropositivo interfere e cria limitadores das mais diversas formas em absolutamente todos os aspectos de sua vida. “Não gosto de ler na grande mídia que um portador do vírus HIV vive da mesma forma que alguém que não possui”, desabafa. “Esse tipo de informação é um desserviço”. A adaptação aos remédios indicados para o tratamento provocou, por muito tempo, uma série de reações alérgicas em Lucas, que custou e sofreu muito para encontrar a melhor medicação para seu organismo. Além disso, os efeitos provenientes dos medicamentos indicados ao longo do tratamento continuam imprevisíveis a longo prazo, o que o preocupa. Casado com um soronegativo, o advogado prefere prevenir do que remediar. “Resolvi antecipá-lo com medicação para coibir qualquer possibilidade de risco de transmissão da doença, mesmo sendo remotamente possível”.
É um sofrimento que Lucas não deseja a ninguém. Para ele, os jovens de hoje em dia não entendem a real dimensão dos riscos, doenças e infecções e por isso não aderem a camisinha em suas vidas sexuais. “Os adolescentes fazem sexo sem proteção por acharem que o HIV vai ser algo fácil de tratar. Ser soropositivo é ter uma vida totalmente regrada, exames periódicos, consultas médicas, remédios diários e muitos limitadores”, afirma. “Gostando ou não, a camisinha continua sendo a forma mais coerente e segura. Qualquer gripe para um soropositivo que não se cuida pode ser fatal e ninguém merece isso”.
“Isso nunca vai acontecer comigo!”. Será?
Os tabus do sexo fazem mal à saúde. Laura Muller é especialista em educação sexual, psicóloga clínica e comunicadora social sobre o assunto. Em uma entrevista para o Soropositivo, a sexóloga do programa Altas Horas, da TV Globo, aborda a complexidade do tema sexualidade e analisa o retorno da dilatação nos índices de detecção de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) entre adolescentes em nosso momento atual, afirmando que a prática sexual ainda é um tópico obscuro nos dias de hoje. “Ainda é difícil falar sobre sexo em casa, na escola, na família e entre casal”, conta a psicóloga e jornalista. “Continua sendo um assunto muito complexo e complicado para a sociedade”. Um exemplo disso está na casa da jovem Karoline Sakurai, 20 anos, estudante de Psicologia da PUC-SP. “Não existe a mínima chance desse tipo de conversa ser aceitável em casa com o meu pai. É um assunto totalmente proibido”, conta.
Laura comenta sobre a dificuldade que os jovens têm, atualmente, de abraçar o uso da camisinha no cotidiano de suas relações. “É muito difícil usar a camisinha”, afirma. “Inclui-la no jogo erótico do casal não é uma tarefa tão simples assim, muitas vezes as pessoas começam a usar a camisinha num início de relacionamento e depois deixam para lá”. A psicóloga diz que, tanto entre pessoas adultas quanto no público jovem, a busca parece estar em somente prevenir a gravidez indesejada e a procura pela prevenção dessas doenças é um tabu ignorado por eles até o chocante momento da infecção. “A mágica ideia de que ‘isso nunca vai acontecer comigo’ é um pensamento imaturo bastante frequente”, afirma a sexóloga. Mariana Queiroz, 21 anos, é estudante de Psicologia na Universidade Presbiteriana Mackenzie e conta que antigamente achava que, por fazer o uso continuo da pílula anticoncepcional, poderia abolir o uso da camisinha em todas as suas relações. “Nunca tive parceiro fixo e minha preocupação sempre esteve concentrada no medo de engravidar”, afirma. “Até o dia em que comecei a ter constantes crises de candidíase, estranhei e descobri que haviam anormalidades em meus exames. Era um tipo de HPV que, apesar de tratável, não deixou de ser um susto. Depois disso nunca mais dispensei a camisinha”.
Apesar das diversas campanhas governamentais sobre prevenção, o combate ao vírus e a todas as outras possíveis doenças enfrenta tremendas dificuldades. Para Laura, a gravidade da situação faz indispensável o reconhecimento individual dos adolescentes em compreender os riscos e almejar uma vida sexual não unicamente prazerosa, mas também responsável. André Ferreira, 18 anos, diz que sua preocupação com o uso do preservativo acontece desde que se tornou sexualmente ativo. “Isso é cuidar de mim, da minha parceira e prezar pela minha saúde”, conta o estudante de Publicidade da ESPM de São Paulo.
A complexidade do tema faz com que Ina Nunes, educadora do Colégio Santa Cruz, em São Paulo, sinta a obrigação de abordá-lo de maneira aberta e esclarecedora com seus alunos do Ensino Médio. “As aulas de Orientação Sexual servem justamente para desmitificar esses tabus e transformar tudo em experiências validas e diálogos, não vergonha, bronca ou proibição”, conta.
O olhar médico
O constante aumento nos índices de ISTs (infecções sexualmente transmissíveis) – principalmente entre os mais jovens – traz preocupações também no âmbito da saúde nacional. Larissa Oliva é formada pela Faculdade de Medicina de Santos, especialista em Infectologia pelo Hospital Emílio Ribas e palestrante nos temas de infecção, serviços de Saúde e AIDS. Em entrevista ao Soropositivo, a doutora aprofunda essa questão e afirma que os jovens de hoje inspiram esse ar “meio despreocupado” quanto ao uso de proteção a fim de prevenir doenças e infecções, principalmente quanto ao HIV, o que preocupa a infectologista. “Dentre as DST’s, a AIDS é a principal. Ninguém tem medo de morrer de sífilis ou gonorreia e nem nunca vai ter”, comenta. Segundo ela, as gerações que acompanharam de perto e se chocaram nas mídias com o surgimento e proliferação da AIDS foram mais impactadas e trouxeram o problema para perto. Hoje, o tratamento da doença – diferentemente da década de 80, quando bastava uma olhada de canto de olho para descobrir que alguém era soropositivo – impede que a doença seja perceptível de primeira. Por conta disso, os jovens colocam o vírus HIV em uma realidade muito mais distante do que a que realmente está. Larissa, entretanto, não coloca a culpa nas políticas públicas. “Elas foram muito eficazes”, complementa.
O aumento do vírus HIV no Brasil é, sem dúvida alguma, estarrecedor, mas nem se compara a sífilis que, apesar de rotulada como antiga, ainda se faz muito presente. Dados do Ministério da Saúde revelam números preocupantes. Em 2010, foram notificados 1.249 casos de sífilis transmitidas por meio de relações sexuais sem o uso do preservativo. Cinco anos depois, esses números saltaram para 65.878, o que representa um aumento de mais de 5.000%. Larissa atribui esse assustador aumento ao não uso da camisinha, já que seis em cada dez adolescentes não usaram preservativo em alguma relação sexual no último ano. Outro fator que contribui para essa dilatação nos índices é o fato de que o principal medicamento responsável por tratar a sífilis é a “Penicilina”, antibiótico já protagonista para o tratamento de muitas outras doenças e infecções. “Como as doenças prosperam, depois de um tempo elas desenvolvem uma resistência quanto a Penincilina e, pouco a pouco, o vírus evolui e ganha forma”, explica. O uso excessivo do medicamento também impulsionou a expansão de reações alérgicas nos indivíduos e fez com que, consequentemente, muitos médicos abandonassem essa indicação para seus pacientes.
É normal que as pessoas achem difícil levar o assunto inclusive aos seus médicos. Fernanda Dijigow, ginecologista e obstetra, é formada pela Universidade Federal do Triangulo Mineiro e atualmente preceptora de ginecologia do HCFMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo). A doutora afirma que suas pacientes sempre carregam grande dificuldade em abordar o tema nas consultas por acharem constrangedor. “É função do médico criar um clima confortável para alcançar uma melhor abordagem do assunto. É muito frequente que a paciente esconda ou minta sobre o que realmente está sentindo”, conta.
Em relação ao atendimento com pessoas que foram diagnosticadas com alguma infecção, Fernanda ressalta ser imprescindível que a paciente seja acolhida em um ambiente livre de julgamentos, atrelado a uma boa relação médico-paciente em um acompanhamento contínuo e sigiloso até que se façam os exames adequados para o momento do diagnóstico final. A obstetra ainda coloca que o parceiro ou parceira também devem participar das etapas e realizar os devidos exames. “Dessa forma, interrompemos o ciclo de transmissão das ISTs”, conclui.
Apesar de 52% da população brasileira declarar que nunca ou raramente fazem uso do preservativo durante relações sexuais, a camisinha continua sendo o método mais eficaz de prevenção. No entanto, Fernanda ressalta que não é a única maneira de se prevenir: “A educação e conscientização da população quanto ao sexo seguro, a abordagem de populações de risco, a garantia de acesso à saúde, de prevenção com vacinas e a possibilidade de profilaxia pós exposição, quando indicado, são medidas alternativas e eficazes”. A médica finaliza a entrevista frisando a importância de uma abordagem amigável e acolhedora desde a primeira consulta até o seguimento pós o tratamento, informando e conscientizando seus pacientes das diversas possibilidades de tratar uma doença sexualmente transmissível e prevenir novas infecções. “Basta querer”, finaliza.